O “campo minado” que Cid deixou para Bolsonaro
O tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), fechou um acordo de delação premiada com a Polícia Federal (PF). O militar entrou na mira dos policiais em uma apuração sobre fraude na vacinação para a Covid-19 e, hoje, é visto como o maior trunfo dos investigadores para se descobrir tudo o que se passava no entorno do então chefe do Executivo.
Desvio ilegal de joias, tentativa de golpe de Estado, grampo em altas autoridades da República e até, eventualmente, corrupção e participação dos filhos de Bolsonaro em irregularidades: tudo pode sair da boca de Cid, cuja função oficial era a de, exatamente, assessorar o ex-presidente e lidar com interlocutores. Bolsonaro, dizem fontes, não teria, em boa parte do tempo, espaço para atender telefonemas nem de ver mensagens – não pagaria, inclusive, as próprias contas bancárias. Cid centralizava tudo.
O Metrópoles apurou que o ex-ajudante de ordens esteve no gabinete do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), na quarta (6/9), para uma audiência sobre a delação. Nas últimas semanas, o militar prestou cerca de 26 horas de depoimento sobre casos que envolvem o ex-presidente Bolsonaro e que estão sob o guarda-chuva do magistrado.
Moraes trabalha para que depoimento de Cid não vaze
Cid chegou ao gabinete do ministro com o aval da PF. O advogado do militar, Cezar Bitencourt, também teria participado da audiência. A aceitação da proposta de delação pela PF foi antecipada pela Globo News e confirmada pelo Metrópoles nesta quinta-feira (7/9).
Agora, cabe a Moraes analisar o caso. Antes disso, o Ministério Público Federal (MPF) deve se manifestar sobre as condições para o trato ser firmado.
Fontes que acompanham a investigação disseram ao Jornal Metrópoles que a expectativa é a de que, com tamanha proximidade com o ex-presidente e por sua boa formação acadêmica, Cid tenha a capacidade de explorar eventos com profundidade e apresentar provas com detalhamento.
Não se sabe se os policiais se debruçaram sobre a participação dos filhos de Bolsonaro em possíveis negociatas. Cid servia como um anteparo do então presidente. E, segundo fontes, todo tipo de informação e apelo chegava ao ex-ajudante de ordens. Inclusive, eventualmente, contatos de empresários interessados em participar do governo e até militares com ambições golpistas.
Até agora, entre bolsonaristas, é incerto o peso da apreensão dos celulares do advogado Frederick Wassef no caso. No geral, há um “pânico”. Wassef é conhecido por ser falastrão. Gosta de aumentar suas próprias ações e importância. O choque de versões entre o que Cid delatar e o que estiver escrito nas mensagens do advogado pode municiar os investigadores.
O ex-ajudante de ordens pode desmentir versões e implicar o ex-chefe. O que se sabe até agora é que havia, no núcleo próximo de Bolsonaro, uma disputa por quem seria o maior “resolvedor de problemas”. Wassef adorava disputar o título e mergulhou, dizem fontes, na tentativa de corrigir ruídos no caso das joias. Acontece que, assim como no caso de Fabrício Queiroz, amigo da família e denunciado por promotores fluminenses por operar um esquema de lavagem de dinheiro para Flávio Bolsonaro, Wassef acabou flagrado fazendo coisa errada, supostamente.
Relação Cid e Bolsonaro
Mauro Cid se formou na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) em 2000, onde Bolsonaro concluiu o curso básico de paraquedismo do Exército, em 1977. Com sólida carreira militar, o ex-ajudante de ordens foi escolhido para integrar a equipe do ex-presidente um pouco antes da posse de 2019, quando estava prestes a assumir uma função nos Estados Unidos (EUA).
O pai de Mauro Cid, general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, foi amigo de Bolsonaro na Aman. A relação dos dois se estendeu durante anos e foi ampliada para outros membros da família.
No cargo de “faz-tudo”, Mauro Cid tinha como funções ajudar nas lives, filmar o “cercadinho” e intermediar encontros entre Bolsonaro e autoridades estrangeiras. O militar também era responsável por recepcionar visitantes no Palácio da Alvorada e tinha acesso privilegiado ao celular do ex-presidente.
Prisão de Mauro Cid
O tenente-coronel do Exército foi preso pela Polícia Federal em 3 de maio deste ano. Cid é um dos alvos da Operação Venire, que investiga a inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19 no sistema do Ministério da Saúde. No mesmo dia da prisão de Cid, os celulares do ex-presidente e da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro foram apreendidos. O casal também é suspeito de participar do esquema de falsificação.
Cartões de vacina
A investigação da PF aponta que os cartões de vacina de Bolsonaro e de sua filha, Laura, de 12 anos, foram falsificados no dia 21 de dezembro de 2022, dias antes de a então família presidencial viajar para os EUA. Outros comprovantes falsos são do próprio Cid, de sua esposa e das filhas.
Segundo os investigadores, as pessoas beneficiadas pela falsificação conseguiram emitir certificados de vacinação e burlar as restrições sanitárias impostas pelos EUA para conter o avanço dos casos de Covid.
Durante a inserção de dados falsos no sistema do ConecteSUS, os envolvidos deixaram rastros que facilitam a investigação da PF. Os acessos à plataforma do Ministério da Saúde aconteceram por meio de um computador atribuído a Mauro Cid.
A Operação Venire foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes dentro do inquérito das “milícias digitais” que tramita na Corte. O magistrado considerou “plausível” a linha de investigação da PF de que grupo ligado ao ex-presidente teria inserido informações falsas no ConectSUS para obter vantagens ilícitas.
Por sua vez, Bolsonaro afirmou que ele e a sua filha não tomaram vacina contra a Covid-19. O ex-presidente também negou que tenha adulterado os cartões de vacinação de sua família. Cid prestou depoimento à PF em 18 de maio sobre a falsificação dos cartões de vacinação. Na ocasião, ele ficou em silêncio.
Joias apreendidas
Em 2021, o governo Bolsonaro tentou trazer, ilegalmente, para o Brasil um conjunto de joias da marca Chopard e um cavalo ornamental em miniatura avaliado em € 3 milhões, o equivalente a cerca de R$ 16,5 milhões. Os itens eram presentes do governo da Arábia Saudita para a Presidência brasileira. Sem terem sido declarados, os objetos de luxo foram retidos pela Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos.
Cid foi o primeiro a ser escalado pelo governo para tentar resgatar pessoalmente os itens. Em depoimento à PF, o militar informou que Bolsonaro solicitou que ele verificasse se era possível retirar os objetos de luxo. O oficial Exército destacou que não foi uma ordem, mas sim uma solicitação do ex-presidente. O governo Bolsonaro fez oito tentativas ao todo com o intuito de reaver as joias. O ex-presidente usou os ministérios de Minas e Energia, Economia e Relações Exteriores.
Venda das joias
Investigação da PF aponta que Mauro Cid teria intermediado a venda de uma caixa de joias dada ao ex-presidente pelo governo saudita a uma loja de luxo de Nova York, nos EUA. Os itens foram colocados em destaque no catálogo de Dia dos Namorados da Fortuna Auction, com preços de US$ 120 mil a US$ 140 mil. O leilão para compra das joias foi aberto em fevereiro deste ano.
O coronel Lourena Cid, pai de Mauro Cid, também é suspeito de participar da venda ilegal das joias entregues a Bolsonaro. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), os presentes dados ao ex-presidente pelo governo da Arábia Saudita devem ficar no acervo da União.
Movimentação atípica
Mauro Cid movimentou R$ 3,7 milhões no período entre julho de 2022 e maio de 2023, é o que mostra o relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) entregue à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que apura os atos golpistas do 8 de Janeiro.
O Coaf avalia a movimentação como “incompatível” com o patrimônio do tenente-coronel. No Exército, o salário bruto de Cid é de R$ 26,2 mil.
O relatório mostra que, em 10 meses, a movimentação do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro registrou R$ 2,11 milhões em débitos e R$ 1,63 milhão em créditos.
Atos antidemocráticos
A revista Veja revelou, em junho, que a PF encontrou uma minuta para a decretação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no celular de Mauro Cid. O documento previa estado de sítio “dentro das quatro linhas” da Constituição, termo utilizado repetidas vezes pelo ex-presidente Bolsonaro. O documento teria sido fotografado pelo militar e encaminhado para um contato salvo em sua agenda como “Major Cid – AJO Pr”, em 28 de novembro de 2022.
Comunicação entre Cid e Bolsonaro
O ministro Alexandre de Moraes proibiu que Mauro Cid se comunicasse com o ex-presidente Jair Bolsonaro, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e a própria esposa de Cid, Gabriela. Em sua decisão, Moraes destacou que é fundamental o veto de comunicação entre os investigados no inquérito das milícias digitais para dar continuidade na investigação.
Especialista em delação
Terceiro advogado de Mauro Cid nos inquéritos em que o tenente-coronel responde no STF, o criminalista Cezar Bitencourt é especialista em delação premiada e já atuou na defesa do ex-deputado federal Rodrigo Rocha Loures, ex-assessor do ex-presidente Michel Temer.
Bitencourt já apresentou várias versões sobre a participação de Cid na venda de joias. O advogado chegou a declarar que o militar apenas obedecia a ordens de seu chefe, o então presidente Jair Bolsonaro.
Depoimentos de Mauro Cid
O tenente-coronel prestou depoimentos à PF nos casos das joias, da falsificação dos cartões de vacina e do hacker Delgatti. Durante as oitivas dos dias 25 e 28 de agosto, Mauro Cid explicou aos investigadores detalhes incriminatórios de sua atuação no governo Bolsonaro.
Fontes ouvidas pelo Metrópoles afirmam que o militar tem colaborado com as investigações e mostrado como funcionava a estrutura hierárquica da gestão Bolsonaro.
Fonte: Metrópole